terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A. B. C.


Deus é brasileiro. Mas quem manda é o Marcola. É, ele é o patrão. Ah prussôr, eu não vou entrar não. Ele é quem manda. Tá bom, tá bom, já que o senhor insiste. Mas ó, não vou fazer lição. Ah, muleque-doido! Tô cansado. Quatro da manhã ainda era noite, Jão. Só fazendo avião. Depois, o Play 2. Não é mole não. O jogo é bravo. Exige concentração. Que fita que eu tenho? Daquela de tiro. Plá! Plá! Plá! Me imagino tipo com uma sete-meia-cinco. Mas logo mais eu tô com uma automática na mão. É, cê vai ver, doidão.

Ah prussôr, não vou fazer lição não. Não entendo nada mesmo. Tô cansado de ficar só copiando. Num sei lê, num sei escrevê. Contá? Contá eu conto, claro. Trabalho com dinheiro vivo. Se eu não contá quem é que garante a minha mesada? É, a vida é cara. Quem paga meu tênis, minhas roupa de marca? Quem? Pai e mãe num tenho. Já foi. Tudo morto. Só balaço. Mas eu nem ligo. Já cicatrizô. Nem choro. É rapá, homem não chora. Só Jesus chorou. O cara era gente fina, mas ó, muito pacífico. Comigo não, é na bala. Minha vida é na quebrada. E no esquema. Nem olhe pra minha cara. Olhô, plá! Levô tiro.

Quem guia a minha mão é o Marcola. Se eu já matei? Eh prussôr, da missa cê não sabe o terço? Já tenho treze anos pô. Sô bicho solto, bicho feito. Tô enquadrado. É, já tô viradasso. Já paguei até veneno. Um ano na FEBEM. Várias rebelião e o caralho. Tô aqui de L.A., só por causa do juiz. Mêmo assim, num tem quem me segura. Fico pelos corredor, só nas fissura. Dando umas volta, ganhando a fita. Estudá? Só entro na aula do senhor porque o prussôr é gente fina. Mas não estudo não. E só entro de vez em quando. É, não tem mais jeito, Jão. É feio ficar chorando pelo que se rebentô, já se estragô. Tem defeito. Minha vida agora é assim, só no arrebento. Mudá? Só se for de ponto. De vida eu não quero não. Tô bem, prussôr. Valeu a preocupação, satisfação.

Ah, muleque-doido! Ó, tô saindo. Cansei de ficar na sala de aula, na escola, sei lá. Aqui é tudo muito parado. Vou pra rua. Lá que é o barato. É. Lá eu já sou mestre.


RODRIGO CIRÍACO

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Hora de deitar

By Silvana Benevenuto


No final de semana passado, ao chegar em casa, deparei-me com algo inusitado:
No meio do caminho tinha uma árvore.
Tinha uma árvore no meio do caminho.

Na verdade, lembrei-me desses (quase) versos de Drummond. Todavia, não creio que a árvore estava no meio do caminho. Acredito que nós que estavámos no caminho dela.

Há tempos estava observando essa mesma árvore, que sempre esbanjou beleza na calçada da frente da minha casa. No ano passado, num dos tantos dias bem corridos, antes de entrar no carro, pensei que chovia. Logo, comentei com a minha vizinha: " Nossa, tá chovendo?!", ela respondeu prontamente: "Não, é árvore que está chorando, ela está doente".

A imagem do choro da árvore permaneceu em mim naquele dia, o certo era que para mim aquelas gotículas expressavam algo...

Porém, não era água do céu. Não era chuva. Porque chuva, eu conheço! Qual paulistano não conhece chuva?! Qual paulistano não teme quando observa aquelas nuvens pesadas que parecem pairar em cima de nossas cabeças?!

Só sei que o ano iniciou-se com muita água. Nunca vi chover tanto! E quantas pessoas perderam tudo que tinham e quantas pessoas perderam a vida...

Sei que muitas coisas precisam ser mudadas...Todos deveriam ter moradias dignas... O governo permanece omisso e parcela da população continua jogando lixo nas ruas, não cuidando do nosso espaço, enfim...

Creio que a árvore assistia a tudo isso...Creio que ela estava cansada de ver tanta tristeza...

Naquela tarde choveu.

Não que a chuva fosse novidade. Mas choveu. Não muito.

Quando cheguei em casa e vi minha rua fechada, vi aquela árvore bonita no chão, fiquei entristecida...Mesmo na escuridão, eu conseguia enxergar o amarelo vivo que brotava das flores...

Contudo, ela estava caída. Renova-se um ciclo. Porém, ela estava calada.

Logo, quis saber sobre o ocorrido...Como tinha sido...se tinha machucado alguém...se tinha acertado algum carro (afinal de contas, sempre havia carros estacionados por ali)...

Depois de conversas e de reflexões, percebo hoje que a árvore não dispencou, ela já estava cansada: ela deitou-se.

Não machucou ninguém.

Não houve nenhum estrondo.

Ela repousou.

E no outro dia, após a retirada dos troncos, olhei para a calçada...Não havia mais as folhas caídas, nem a sombra para refrescar esses dias de sol escaldante...

Era apenas um espaço sem cor.

Era apenas uma sombra no silêncio.